Publicado em 14/12/2012 por Bogueiras Feministas. Em épocas de festas para repensarmos.
A autora desse texto prefere ficar no anonimato. Ela se comprometeu a escrever um texto sobre violência sexual contra crianças para ser publicado nesse espaço. Porém, não conseguiu escrever sem relatar sua história. Nas palavras dela:
Gostaria que ele fosse publicado como anônima, não por minha causa, mas por minha família (especialmente minha mãe). Nunca expus tão publicamente essa história. Mas, sinto que está na hora e que isso pode contribuir para que outras pessoas livrem-se desse fardo.
Texto de C.
Confesso que, mesmo pra mim, aquilo parecia cena de Stieg Larsson. No fim das contas, eu, diante de uma juíza — provavelmente da minha idade — uma escrivã e uma promotora de justiça grávida, respondendo às questões inspiradas em meu depoimento para a assistente social da Vara da Infância, Juventude e Idosos, no centro do Rio de Janeiro.
Elas me garantiram que eu não esbarraria com ele. Fizeram o que podiam para me dar tranquilidade e segurança, numa salinha apertada e mal ventilada, onde a cada dez minutos passava um oficial, uma psicóloga ou outra assistente social falando das coisas cotidianas de quem trabalha nesse universo cinzento. O prédio cinza e sem atrações nas paredes internas e nas salas de atendimento para as crianças é temido por mim, quiçá por elas. Vi poucas crianças no corredor, antes de entrar na sala onde me aguardavam. “Que minha filha nunca precise pisar aqui”. Entrei com uma de minhas irmãs, que também tinha uma história triste para contar.
Eu estava decidida. Nunca me arrependi de ter ido até o Conselho Tutelar, um ano antes, e ter confirmado ao conselheiro as suspeitas que recaíam sobre meu pai. Eu tinha uma história triste para contar, que nunca tinha ido a ouvidos tão estranhos. Mas, eu estava decidida. Não havia nada que eu pudesse fazer por mim mesma, naquela altura. Meu caso tinha prescrito, segundo informação que recebi cerca de dois anos antes, numa ligação para o Disque Denúncia, quando o tema voltara a rondar minha cabeça, minhas sessões de análise e minhas conversas com minha mãe e três irmãs.
Mas, depois que engravidei de uma menina, decidi pelo menos me livrar da presença dele. Tirei-o de minha vida de forma tão radical que sua esposa encontrou-me por telefone e quis saber o motivo da minha decisão. Sem afirmar nada, ela me deu a entender que desconfiava de que eu protegia minha filha. Desliguei o telefone sem revelar meu sentimento, sentindo-me impotente. Aquela história triste me seguiria vida afora e eu nada poderia fazer com ela… Sentei-me no computador e enviei um e-mail, contando o que eu não conseguira falar. Eu estava grávida, com a força e a paixão de quem se sente inteiramente responsável pela vida de outra menina. Eu começava a me ver como uma feminista.
Meses depois, o conselheiro tutelar me liga. Diz ter em mãos uma cópia daquele e-mail e uma denúncia da então esposa de meu pai contra ele — referente a um caso recente. Era a oportunidade de fazer alguma coisa, ou de dar continuidade ao que eu tinha começado a fazer. Minha filha tinha poucos meses. Meu marido me apoiou. Fui sozinha e temerosa até o viaduto de Laranjeiras, onde alocaram o Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio. Escuto o conselheiro lamentar-se das condições de atendimento, do absurdo de terem um escritório tão pequeno, literalmente debaixo de um viaduto.
Ele me pede para relatar aquela história. Explica-me que ele não seria condenado pelo meu relato, mas isso ajudaria a assistente social à traçar um perfil do acusado e a recomendar à juíza que eu fosse arrolada como testemunha no caso presente. Falo de mim e das outras pessoas que eu sabia que tinham passado pela mesma situação, com o mesmo abusador — meu pai.
Repenso tudo, na volta pra casa. Tenho medo. O conselheiro diz saber exatamente como ele pode impor medo. Ele sabe ameaçar. Ele é eloquente. Pseudo-intelectual. Engenheiro. Mestre em Educação. Defensor das ideias de Paulo Freire. Pai de cinco meninas. Irmão de três mulheres. Não é alcoólatra, não é viciado em drogas. Não cumpre o estereótipo. Não tem medo, não tem arrependimento. Mas, mente e sabe ser muito convincente.
Tenho medo, mas fiquei impactada com a pergunta: “você acha que ele seria capaz de fazer isso de novo com outras crianças?”. Nunca tinha pensado nisso seriamente. Nunca tinha cogitado tanto essa possibilidade. Lembro que uma vez, aos vinte anos de idade, consegui contar pra minha mãe o que tinha me acontecido na pré-adolescência. E soube finalmente o que já desconfiava, que eu não tinha sido a única. Minha família foi sacudida. Fizemos um almoço regado à lágrimas. Duas de minhas irmãs, que não se lembravam de ter passado por qualquer situação parecida com ele, ficaram estarrecidas. Minha mãe abrira o coração sobre como descobrira o que acontecia com a outra, também na pré-adolescência. Outras histórias de abusos e violência fora da família vieram à tona. Cada uma se tornou testemunha. O pacto de silenciamento começara a ser rompido.
Convocamos nosso pai para dar esclarecimentos. Ingênuas que éramos — ainda esperando uma explicação razoável, uma lágrima de arrependimento — o vimos desprezar nossa mãe e afirmar simplesmente que não sabia porque tinha feito aquilo. Jurou que nunca tinha feito novamente com outras crianças e se calou. Todas nós voltamos a nos calar. E a vida prosseguia. E os natais continuavam a contar com a presença impositiva e constrangedora dele.
Ele tentou convencer a mim e minhas irmãs de que isso não é nada demais. Sem falar do assunto com honestidade, e impondo um pacto de silencio eficiente, nunca temeu realmente que um dia sua filha mais atrevida viesse a descobrir outras vítimas e a denunciá-lo.
Hoje eu tenho consciência: não se trata de uma doença apenas, não se trata de pedofilia, incesto, de uma ou outra categoria que tenta extirpar da “sociedade dos normais” tamanha violência. Trata-se de uma tremenda hipocrisia. A mesma sociedade que afirma “a doença” alimenta a cotidiana submissão das mulheres e das meninas. Submete-as ao papel de “objeto sexual” antes que possam elas mesmas afirmarem-se como sujeitos de desejo. Invadem-nas com uma identidade servil, de um sexo para o outro, de um corpo que não pode ser inteiro sem ser de outro. Não basta dizer-se contra a pedofilia e ser alheio à história da sociedade que usou crianças e mulheres, por muito tempo, como objetos, sem direitos, sem poder, sem voz.
O reconhecimento de nossas vozes é recente. E são poucas as mulheres que tem coragem de relatar suas histórias tristes. São postas sob desconfiança. São agredidas. Porque romperam com o pacto de silêncio. E é por isso que eu, depois de tanto tempo, decidi erguer minha voz. Por fim, quero dizer que essa história triste não define quem sou, não me marcou mais do que o necessário para me fazer agir. Eu sei quem sou e a que vim. Não me iludo com os efeitos da minha voz solitária. O processo no qual testemunhei seguiu em segredo de justiça e pouca notícia pude obter. Sei que, em primeira instância, houve condenação. Mas, há alguma medida de fato que o impeça de cometer o mesmo crime repetidas vezes? Não.
Ainda há um longo caminho a percorrer. As pessoas não gostam de ouvir, não querem falar sobre o assunto. Alguns tem resistência às próprias lembranças. Outros tem medo de perder o poder. Ainda há aqueles que negam cegamente a sexualidade infantil. Mas, é necessário falar dela. É necessário entender que a criança tem seu corpo, dotado de potência, de energia, de vitalidade, que são dela e somente dela. Eu entendo que você prefira condenar os abusadores ao rótulo de pedófilos do que reconhecer que a doença deles é reflexo de uma sociedade patriarcal, na qual feministas ainda são alvo de preconceito e intolerância. Mas, sim, eu sou capaz de dividir esse pedacinho triste do meu passado para, quem sabe, quebrar um pouco essa hipocrisia coletiva e reafirmar a importância do meu feminismo.