A disciplina e a rigidez

Muitas palavras empregadas atualmente já não exprimem mais seu verdadeiro sentido e isto se deve à nossa perda de referencial de sua etimologia ou, muito mais que isto, à perda do referencial da própria conduta humana que, com o passar do tempo, tem-se afastado do verdadeiro sentido da vida, do servir, da ação pelo dever e da busca de justiça em tudo o que faz.

Neste artigo trazemos um diálogo entre um discípulo e seu mestre que procura esclarecer um pouco da identidade humana, ao mesmo tempo em que tenta mostrar um pouco do verdadeiro e mais profundo significado do que seja ser rígido e do que seja ser disciplinado.

D – Mestre, posso fazer-lhe uma pergunta?

M – Claro filho, diga-me, o que está nublado para você?

D – Disseram-me que sou muito rígido, uma vez que sou muito disciplinado por procurar sempre estar no horário com meus compromissos, nem adiantado nem atrasado, por não aceitar a desordem, e outras coisas que deveriam iniciar e terminar nos horários pré estabelecidos. Fico pensando até onde de fato estou certo ou errado. Querer que os horários se cumpram é ser rígido? Ser disciplinado é sinônimo de ser rígido?

M – Bem filho, antes que eu possa responder a esta pergunta, gostaria que se possível você me respondesse outras.

D – Decerto, mestre, se estiverem ao meu alcance.

M – Nada perguntarei que já não tenha uma resposta dentro de você.

M – Diga-me, o que entende por justiça? O que aprendeu com os filósofos sobre a justiça?

D – Bem, mestre, muito aprendi a este respeito. O divino Platão dizia que ser justo é dar a cada um aquilo que lhe é próprio, ou seja, cada coisa em seu lugar e um lugar para cada coisa, quando cada um está no seu devido lugar temos a justiça.

M – Muito bem filho, vejo que prestou atenção às aulas. Agora diga-me, a que se aplica a justiça?

D – A tudo mestre. Aprendi que todo o cosmo obedece às leis a que chamamos de Dharma, cada pessoa, ideia ou objeto tem seu dharma, ou seja, sua finalidade na constituição e seguimento do universo.

M – Portanto, o que é buscar a justiça?

D – Buscar a justiça é dar a finalidade a que cada coisa se presta, pôr cada coisa em seu lugar e momento, tempo e espaço. Mas mestre, o que isto tem a ver com disciplina e rigidez?

M – Muito filho, porém permita-me continuar.


M – Diga-me, se tivesse de catalogar a disciplina como vício ou virtude o que me diria?

D – Diria sem dúvida que ser disciplinado é ser virtuoso, pois é buscar o arquétipo da justiça, é agir conforme a lei do cosmo que dá a cada coisa sua respectiva função.

M – Pois bem filho, você está correto e lúcido até este momento, porém, agora vamos falar um pouco sobre rigidez.

M – O que entende por rigidez?

D – Creio que ser disciplinado é ser rígido, porém, não estou certo da minha resposta; creio ainda que ser rígido é ser disciplinado em excesso.

M – Ora filho, se ser rígido é ter a disciplina em excesso, pergunto-lhe, há excesso em não roubar, matar ou fazer o bem a vida toda, sendo esta conduta virtuosa?

D – Não mestre, é assim que o homem deve proceder.

M – Portanto, uma virtude não admite excesso. Assim, ser disciplinado não admite excesso já que também é uma virtude que busca a justiça de todas as coisas.

D – Concordo mestre, então ser rígido é um vício?

M – Responda-me você filho, considera um vício a rigidez de uma laje que não cede a uma determinada pressão? Considera um vício a rigidez do Sol ao continuar brilhando e emitindo raios, embora muitos no deserto implorem para que cesse? Ou ainda considera um vício ou mera teimosia de homens como Sócrates, Giordano Bruno ou ainda Jesus que morreram, porém mantiveram firmes suas palavras ante o pior dos males que um homem possa temer, que é a morte?

D – Não mestre, isto não pode ser um vício, é decerto uma virtude.

M – E o que me diz daquele que não muda seu comportamento ante a mais ridícula atitude egoísta, atitudes que carecem de inteligência, mesquinhas e egocêntricas, mantendo sua rigidez?

D – Ora mestre, neste caso parece-me que deixou de ser uma virtude para ser um vício.

M – Filho, a virtude ou o vício não estão na rigidez, mas no que jaz por detrás dela, no seu comando. A rigidez movida pela sabedoria, que anda de mãos dadas com o dever, veste-se de virtude e passa a  denominar-se convicção ou firmeza de caráter, já a rigidez da personalidade, que é dirigida pelos próprios interesses e não pelos interesses coletivos, veste-se por vício, neste caso a rigidez é a incompreensão da disciplina.

M – Portanto, filho, a disciplina está relacionada com a ordem do universo, com a justiça, com o amor, e quando esta ação passa a ser dirigida pela sabedoria, a rigidez nela embutida verte o bem, o bom e o belo, já que nada há  superior à verdade, como disse Helena Petrovna Blavatsky. Entretanto, a rigidez nasce também da ignorância destas mesmas leis universais, pois aquele que não consegue enxergar e não é capaz de pôr cada coisa no seu devido lugar, age por ignorância, age por incompreensão da disciplina e da justiça, e esta é a rigidez da personalidade. À primeira, denominamos sabedoria e à segunda, ignorância, à primeira, persistência e à segunda, teimosia.

Fonte: Academia de Filosofia

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